Escritor del Mes Cronopio

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O SONÂMBULO AMADOR

Por José Luiz Passos*

Clique aqui para ler a versão em espanhol

Quase nos reduzimos a simples espíritos.
(um fiel)

Naqueles primeiros instantes em que eu e o Ramires entramos no centro, e a lotação passou pela cabeceira das pontes, lembrei da última carta que escrevi a Minie relatando um sonho que tive com ela, já em Belavista. Até hoje essa ainda segue sem resposta. Imagino como ella deva ter recebido a notícia das minhas saudades.

Atravessamos tempos de muita dureza na época em que passei a ver Andrezinho com menos frequência. Heloísa estava fria, sempre irritada comigo, mesmo quando acertávamos de conversar com calma sobre como contornar a situação. Nosso menino também ia numa idade complicada, aos treze ou catorze anos.

Ninguém merece sofrer. Um pai não pode querer ver um filho sofrer, são palavras de Lantânio. E os calendários jamais medirão a idade dos corações. Tem gente que nasce para pai, tem gente que nasce para filho.

Saí do Ilhas praticamente abraçado ao Ramires. Andamos desse jeito meio quarteirão ou mais, depois despegamos. Continuava querendo acabar aquilo que não dei fim, a história que Minie tanto queria ver percorrida até o fecho. Disse ao enfermeiro, queixo erguido, que por tudo que se passou comigo, pela força que ele tem me dado, de amigo recente, do peito, não podia deixar de lhe dizer uma coisa. Era o último caso que tinha para lhe contar sobre o meu filho.

Mas só se for agora, o Ramires falou, com um cigarro na boca, e bateu no meu ombro. Então caminhamos pelas ruas da cidade buscando um lugar para sentar à beira do rio. Ainda agora volta a vontade que me deu de lhe dizer que fôssemos logo tomar uma no Tulipa Efêmera ou visitar o sobrado dos comunistas, onde Odilon Nestor foi preso. Porém, cada coisa tinha seu tempo. E o fato é que eu ainda continuava calando muito, sem poder falar direito, sentindo sempre que o peito podia, por qualquer coisa, me acontecer de saltar pela boca.

A garota Tutti Frutti tinha sido uma vedete famosa no meu tempo de juventude. Quando eu e Heloísa voltamos a ficar mais ligados, costumava dar à minha esposa esse mesmo apelido, e ela achava graça. Nossa reaproximação foi uma fase que até hoje mexe comigo. Comentei isto com o Ramires.

Minie, num momento mais complicado, falou que eu tinha o que ela chamava de disponibilidade zero.
Que não prestava atenção às pessoas e só vivia metido dentro de mim mesmo. Não era homem para ela e talvez nem sequer fosse bom amigo, já que ela não podia bater o telefone numa noite em que estivesse mal, pois eu não atenderia. Então que amizade era essa?
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Nosso afastamento foi gradual. Eu e Minie paramos de almoçar no verdão e também fora. Não sei
como, Heloísa notou. Um dia fomos à feira e ela me perguntou se eu queria que levássemos um coelho. Em casa fui ajudar como pude, descascando legumes, separando as panelas, cuidando de provar o sal do caldo quando ela me pedia a opinião. Do que me lembro, acho que cozinhamos calados, mas alguma coisa naquele silêncio já soava diferente. Minha esposa, percebendo isto, fazia por onde eu soubesse o que ela achava que sabia. É difícil descrever esses acertos, porque não são combinados, tampouco são meras coincidências. Heloísa serviu o coelho na travessa grande de barro que compramos numa viagem, por ocasião de uma daquelas excursões que ela gostava de fazer, indo visitar lugares diferentes e até alguns da minha infância. Pedra de Buíque, Brejo da Madre de Deus, Bezerros. Enfim, ela sabia que o coelho, naquele serviço, me dizia qualquer coisa de bom, de antes, que vinha lá de trás, um tempo que era outro, em que esses cardápios aconteciam sem nos chamar tanta atenção.

A graça da rotina veio vindo, e veio firme. Tinham sido quantos anos juntos? De vez em quando também tocávamos no assunto da minha aposentadoria, e quando que seria o tempo ideal para que eu me afastasse do verdão.

Mas não vou é deixar o pessoal na mão, Heloísa. Quem vai cuidar do que está correndo na diretoria,
eu disse, e então repeti a pergunta, pois ela tinha ficado calada.

Minha esposa falou que, se eu quisesse um tempo para descansar e voltar às minhas coisas, precisava passar logo isso adiante, porque do contrário seria pior.

Pior, como?

Jurandir, ninguém vai saber cuidar desses processos. Da orientação que você dá. É melhor colocar alguém antes de você sair. Alguém que você mesmo possa treinar, não é?

Ah, é aí que você se engana, garota Tutti Frutti, eu disse. Coitado de quem for depender de uma mão minha. Falei isto enquanto mexia na caçarola do coelho, por trás dela. Heloísa me ouviu e ficou sorrindo. Talvez risse do apelido de vedete que lhe dei naquela altura, ou então estivesse achando graça de meu interesse em ajudar na cozinha. Repeti que ela era a minha garota Tutti Frutti, então fui e lhe dei um abraço pelas costas.

A tal vedete de verdade, que encantou corações e dançou na casa Cintilante, na pequena cidade de minha juventude, depois de madura precisou contar com o benefício de antigos clientes. Cada qual lhe fazia um favor, e dessa forma ela se queixava mas seguia de pé, comendo o que lhe dessem para comer. Pois a fatal, que tinha se lançado a paixões tão fortes, feito e desfeito famílias, precisou viver das graças alheias, no total contrário de seu espírito livre, que tanto fascinava os moços e revoltava as já casadas.

Referi essa história da garota Tutti Frutti algumas vezes a Heloísa, porém não naquele dia, na cozinha, tenho certeza. Naquele dia chamei uma pelo apelido da outra, somente isso. Lembro que comemos o coelho com feijão-verde e, então, eu e a minha senhora Tutti Frutti fomos para o quarto. Nem era noite ainda, porque aquele era o almoço, um almoço de sábado, eu acho, mesmo assim fomos dali direto para o quarto. E esta sequência foi o que ficou para mim daquele período melhor, que finalmente recomeçava para nós dois.
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Depois de uma longa caminhada eu e o Ramires paramos à cabeceira da ponte Maurício para comer os sanduíches de Belavista.

Forrei um guardanapo de papel na mureta que dá para o rio e o Ramires sentou em cima. Havia que cuidar do paletó do Ilhas, que precisava voltar para as mãos do garçom-chefe até as cinco da tarde, ou então o tal Gonzaga, amigo dele, podia achar ruim.

Enquanto lanchávamos, eu assistia aos meninos brincarem ali perto. Muitos pulavam de um caisinho que tinha lá embaixo, com degraus antigos feitos de pedra, descendo até a água. Os mais afoitos se esgueiravam pelos pilares da cabeceira e pulavam dali, da marquise, causando maior impressão.

Será que esse rio é fundo, Ramires?

Sei não. Uns vinte metros, talvez.

Vinte metros?

Sei lá, Jurandir. Vinte. Ou cinco. Ou dois. Que diferença faz?

Faz muita. Vinte metros é muito fundo para um rio.

O enfermeiro não rebateu. Talvez pensasse, como eu pensava, no quanto custaria abrir a boca para falar do que nos incomoda e dar, daí, um retrato do que acreditamos ser mais justo. Nestas circunstâncias, quem não tinha medo de virar a mesa? Ou cair, ficar na segunda linha, ver o pó. Sei como é isto. Por acaso vocês sabem? O Ramires sabia?

Como me disse uma vez um borracheiro, acidente sem culpados é mais fácil de se aceitar. Pensava
nisto, enquanto meu amigo comia com cuidado, para não estragar sua fantasia emprestada. De vez em quando ele parava para fazer um comentário sobre os militares ou me perguntava o que era mais que eu tinha para lhe contar.

É cedo para beber, Ramires, eu disse, respondendo às insinuações dele sobre irmos atrás de uma garrafa
de qualquer coisa, ali perto. Segundo o enfermeiro, ouvir histórias com a garganta molhada é sempre melhor.

Insisti que era cedo demais para aquilo.

Cedo? E garrafa tem relógio? Veja bem, o Carlos Prestes sorri desses paradoxos do tempo e da liberdade.

Isso quer dizer o quê? Realmente, Ramires. Que porcaria foi essa que você falou agora?

Jurandir, o futuro. Temos que fazer um brinde ao futuro.

Pouco me importa o futuro, meu caro, eu disse. E invoquei a grande madame Góes. O futuro pertence
somente aos espinhos no coração de Jesus.

Naquele dia infeliz, eu dizia ao Ramires, entrei no bar do Neco e peguei uma mesa perto da parede, ao fundo. Ainda estava com dor de cabeça, as mãos suadas. Sem bicicleta, a caminhada era mais chata no calor de dezembro. Tinha saído atrasado do verdão para casa e, de lá, fui chegar ao bar no escuro. Um garçom conhecido me estranhou àquela hora. Sentei para pedir uma Coca, mas demorei até chamar por ele. Fiquei pensando no que tinha acabado de me acontecer.
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* José Luiz Passos is an Associate Professor of Luso-Brazilian Literatures and Cultures. He received his Ph.D. in Hispanic Languages and Literatures from UCLA in 1998. Prior to joining the Department of Spanish and Portuguese at UCLA in 2008, he held a tenured appointment at UC Berkeley. He was recently the inaugural director of the UCLA Center for Brazilian Studies (2008-2011). He is the author of Machado de Assis, o romance com pessoas (University of São Paulo Press, 2007), on Shakespeare and moral imagination in the Brazilian realist novel, and Ruínas de linhas puras (Annablume, 1998), on displacement and identity in Mário de Andrade’s Macunaíma (1928). José Luiz Passos is also the author of two novels published by Alfaguara: Nosso grão mais fino (2009) and O sonâmbulo amador (2012). His current research and teaching focus on contemporary fiction, Machado de Assis, and travel in the nineteenth century.

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