«FANTASMAS», MITOS E LENDAS EM «EL TAMAÑO DE MI ESPERANZA»
Click aquí para leer el original en español
A frase inaugural de «El tamaño de mi esperanza» que diz «A los criollos les quiero hablar» parece propor, como refere Farias (1992, p.37), um «chamado para compartilhar uma missão histórica transcendental». Sobre este chamado pode-se dizer que postula um destinatário e uma pergunta. O destinatário pertence a uma categoria especial de «criollo», classe que abraça homens que sentem na pele a «argentinidade», que não possuem laços afetivos nem admiração pela Europa, que vivem e morrem na terra que amam, que são valentes e que se orgulham do chão que pisam. Quanto à pergunta, a mesma diz: «¿Qué hemos hecho los argentinos?» (BORGES, 1993, p.11) , interrogação que procura respostas nesse tipo especial de «criollo» que parece possuir um caráter especial que exclui qualquer cidadão, mesmo que nascido na própria Argentina, que deseje o padrão ditado pela Europa da época (o alheio, o distante).
Este personagem não é uma figura do campo, nem é uma figura da moderna cidade. Este tipo de «criollo» que é referido no texto, não se trata especificamente do gaucho, relacionado e unido à Pampa, senão do «compadrito» ou «malevo», figura típica do arrabalde e das margens da Buenos Aires-pátria descrita por Borges. Este «gaúcho na sua versão urbana, ou melhor, suburbana», esta «espécie de reencarnação urbana, mistura do criollo e do imigrante, do gaúcho real» (CRUZ, 2004, p.146-147) pareceria que está chamado a construir uma resposta e a erigir-se na figura que, muito além de um arquétipo literário, deveria carregar sobre suas costas a construção de um símbolo da «argentinidade». Claro, que se trata de uma grande sátira daquilo que pode ser um protótipo ou representante único de um país.
O «compadrito» não é um representante de um povo. Ele é basicamente um tipo especial de «criollo» (entendido como sujeito autóctone, de profunda relação com sua terra) de que se encontra nas «orillas» ou margens da cidade. Em «El tamaño de mi esperanza», este «criollo» singular era definido, não pela origem ou pelo sangue, mas sim por sua ralação com a pátria (bairro ou universo). Esta diferenciação tende a esclarecer que o arquétipo do «compadrito» está baseado em elementos extra-geográficos e nasce da postura que o homem da margem tem ante a vida.
É interessante observar como o texto tenta comunicar-se com o «compadrito» a partir de uma postura diversa daquela de outros autores saudosistas que escrevem sobre os «criollos» com parâmetros europeus, aqueles que escrevem em Buenos Aires com a cabeça no velho continente:
A los criollos les quiero hablar: a los hombres que en esta tierra se sienten vivir y morir, no a los que creen que el sol y la luna están en Europa. Tierra de desterrados es ésta, de nostalgiosos de lo lejano y los ajeno: ellos son los gringos de veras, autorícelo o no su sangre, y con ellos no habla mi pluma. (BORGES, 1993, p.12)
O texto está dirigido a uma geração que compartilha um espaço que se está tentando erigir, assim como também tenta criar um verdadeiro mito com a nova figura. Mito que não representa um país, mas que se constitui, no texto, como alguém que parece reclamar esse título. O gaúcho, ainda que sem abrangência universal, já era lenda e ocupava as páginas da literatura argentina. Agora, parece se inferir no ensaio borgeano, é o momento de um novo personagem, que possa compactuar com o universo a partir de uma sólida imagem mítica no país que lhe deu origem.
A visão do texto parece querer fechar o cerco sobre a pátria dos argentinos e, especialmente, em torno da pátria dos «compraditos» mas, ao mesmo tempo, dando um ar de universalidade a esse espaço específico. Nesta linha de pensamento, pode-se encontrar o diálogo textual permanente com outros autores, além da conexão estrita com a civilização ocidental.
Assim, enumeram-se uma série de eventos históricos realizados pelos argentinos ao longo do tempo, mas nenhum deles parece corresponder a um fato que efetivamente seja importante ou fundamental para a humanidade. O que fez o grupo de pessoas que constituiu ou constitui o povo argentino até 1926, se é que na realidade fez alguma coisa, parece perguntar o texto. Esta indagação é seguida de um raciocínio filosófico que aponta fatos que merecem ser lembrados como eventos de importância fundamental. Há, no ensaio, fatos que podem ser relacionados com ações históricas e fatos vinculados à literatura e a escrita. A resistência às invasões inglesas, as guerras pela independência, a batalha de Monte Caseros e a Santa Federação são eventos históricos. Sarmiento, Hernández,, Mansilla,, del Campo,, Wilde, Carriego, Fernández, Güiraldes, Groussac, Lugones, Ingenieros, e Banchs são nomes do segundo grupo.
Este reducionismo aponta a assinalar falsamente a pobreza do fazer nacional. Um espanhol pode jactar-se do descobrimento da América, dirá o texto, mas um argentino não possui na sua história um fato de tamanha dimensão que possa ser citado. No passado não existe quase nada, e o que existe é muito vago. É assim que o ensaio nos assinala que não há lendas caminhando pelas ruas de Buenos Aires:
He llegado al fin de mi examen (de mi pormayorizado y rápido examen) y pienso que el lector estará de acuerdo conmigo si afirmo la esencial pobreza de nuestro hacer. No se ha engendrado en estas tierras ni un mística ni un metafísico ¡ni un sentidor ni entendedor de la vida! […] No hay leyendas en esta tierra y ni un solo fantasma camina por nuestras calles. Ese es nuestro baldón. (BORGES, 1993, p.12-13)
Desta forma, Borges cria para si um espaço em branco que pode ser preenchido com um personagem, não explorado suficientemente, que se encontra num território também pouco explorado: as margens da cidade.
A respeito desse espaço, são altamente explicativos os comentários de Sarlo:
Lejos de considerarlas un límite después del cual sólo puede saltarse al mundo rural de Don Segundo Sombra, Borges se detiene precisamente allí y hace del límite un espacio literario. En «las orillas» define un territorio original, que le permite implantar su propia diferencia respecto del resto de la literatura […] Borges inscribe una literatura en el límite reconociendo allí una forma cifrada de la Argentina. Superficie indecisa entre la llanura y las primeras casas de la ciudad, «las orillas» tienen las cualidades de un lugar imaginario cuya topología urbano-criolla dibuja la clásica calle «sin vereda de enfrente». (SARLO, 1995, p. 54-55)
Nesse aspecto territorial, observa-se que no texto existem menções diretas e especiais às ruas de Buenos Aires e não se observam os mesmos comentários em relação ao campo (lugar que já possui seus próprios heróis). Aqui, outra vez e nas entrelinhas, pode identificar-se a intenção de marcar a suposta necessidade de um protótipo mítico de índole mista (urbano e campestre), de um estereótipo das margens, de um personagem já ensaiado por Carriego e sua poesia, mas que Borges pretende modelar como a nova cara literária do bairro popular. O «compadrito» borgeano quer ser estabelecido como um personagem duradouro e reconhecido nas letras do país.
E talvez o tamanho da esperança borgeana radique nesse personagem suburbano. Símbolo chamado a preencher o hipotético vazio das ruas portenhas e a escrever na história alguma página entendida como essencial que possa responder à pergunta central do texto. Uma pergunta simples que tenta, além da crítica, ver, daquilo que foi feito, o que pode servir para os outros, para a civilização. O jovem Borges parece procurar e se preocupar, nos seus primeiros ensaios, com um espaço -a cidade de Buenos Aires e suas margens- e com alguns personagens -os históricos e os que virão- que conformarão uma realidade, sua realidade ampla, aquela que permite tanto o cosmopolitismo como o próprio.
É aí, entre um «progressismo» marcado pelo seu aspecto cosmopolita e um gauchismo, sinônimo de um localismo que reflete a solitária vida do gaúcho na enorme extensão da pampa, o escritor tenta recuperar uma memória nebulosa e dar um pouco de luz para projetá-la do futuro. Esse é o tamanho da esperança do jovem Borges. Esperança que não nasce nos polos, senão nas margens, nas zonas intermediárias, no arrabalde e que visa novos espaços com novos ocupantes para a literatura argentina. Quando lemos que se afirma «la esencial pobreza de nuestro hacer» (BORGES, 1993, p.12), entendemos a estratégia de debilitar o passado para facilitar um futuro, a ideia de exibir um passado que universalmente não aportou nada aos olhos da história da humanidade, para preparar um terreno fértil para a novidade daquilo que está por vir. Se não «hay leyendas en esta tierra y ni un solo fantasma camina por nuestras calles» (BORGES, 1993, p.12), elas podem ser criadas.
E uma das estratégias para criar uma lenda que converse com a universalidade, segundo Borges, pareceria ser o fato de desenvolver algo autenticamente pátrio, pois criar algo próprio não significa não conversar, manter o diálogo ou estar em contato com o mundo:
No quiero ni progresismo ni criollismo en la acepción corriente de esas palabras. […] No cabe gran fervor en ninguno de ellos y lo siento por el criollismo. Es verdad que de enancharle la significación a esa voz — hoy suele equivaler a un mero gauchismo — sería tal vez la más ajustado de mi empresa. Criollismo, pues, pero un criollismo que sea conversador del mundo y del yo, de Dios y de la muerte. A ver si alguien me ayuda a buscarlo. (BORGES, 1993, p.14)
Nesse sentido pode originar-se um fantasma ou uma lenda para Buenos Aires, nesse sentido o arrabalde e o «compadrito» podem significar criar o nosso e, quiçá, algo que também possa ser essencial e universal. Criar, algo «criollo», mas também geral. Como a valentia e a honra, como a defesa da vida pelas armas e a paixão pelo jogo. Só assim, poderia ser compreendido um símbolo que caminha dançando, que é filho da honra e do tango, e que se acompanha pela faca e pelas cartas de truco.
Assim, propõe-se um mito para uma esperança futura, para uma esperança de margens regionais e, simultaneamente, de universos. É assim que, se bem trabalhado, o subúrbio e seu entorno carregados de magia bruta pode ser transformado em beleza.
Borges, insistindo na sua convicção, tenta mostrar sua ideia do Buenos Aires país (e também bairro) que tem a história no amanhã, que tem a grandeza no depois. Assim é que, baseado na crença de uma «argentinidade» instalada nas páginas da história ainda não construída, convida «a ser dioses y a trabajar en su encarnación» (BORGES, 1993, p.14).
Para criar algo universal e «criollo» que repouse numa esperança, deve-se debilitar o passado e engrandecer o futuro. Essa é a estratégia que se usa para fortalecer um personagem e um espaço escolhido para contrapor com aquele onde é soberano o Martín Fierro e seu pampa.
É nesse sentido e com essa intenção que Borges sugere que não basta um «criollismo» vinculado a um Fierro potencial que não conseguiu sair de um mero ismo argentino e que as lendas dos grandes patriotas e dos heroicos gaúchos não foram suficientes para dar vida a um referente universal. Buenos Aires, olhando o futuro, possuiria todos os elementos necessários para criar uma pátria «criolla» grande e essa pátria descansa na figura do «compadrito». Esta figura, como acertadamente afirma Farias (1992, p.40) citando a Borges, era um sujeito histórico que ainda não tinha sido objeto de um estudo especial e que poderia ser utilizado como a base da lenda que alcançará a nova identidade argentina.
Parece que, a nova esperança literária argentina já não estava vinculada à pampa, nem ao gaúcho. A página essencial, em aparência, seria encontrada nas margens de Buenos Aires e desde esse patamar verdadeiramente «criollo» conversaria com o mundo, com o eu, com Deus e até com a morte, nas palavras de Borges. Um «criollismo urbano universal», como lembra Camurati (2005, p.276), que aproxime os termos do local com o cosmopolita. Uma tentativa, muito irônica [1] e brincalhona, claro, de colocar as futuras letras de um país ou a potencial história transcendental da sua terra nas margens de uma cidade ou em cabeça de homens silenciosos [2] dedicados às brigas de faca e às noites de tango.
Referências bibliográficas:
MAYER, Marcos. Biografía de grandes creadores: Jorge Luis Borges. Buenos Aires: Agea, 2006.
BORGES, Jorge Luis. El tamaño de mi esperanza. Buenos Aires: Seix Barral, 1993.
CAMURATI, Mireya. Los raros de Borges. Buenos Aires: Corregidor, 2005.
CRUZ, Cláudio Celso A. da. Sobre alguns temas arrabaleros em Borges. In: ALCARAZ, Rafael C.; COSTA, Walter (Orgs.). Hispanismo 2004. Literatura hispano-americana. Florianópolis: UFSC/DLLE; ABN, 2006.
FARIAS, Vítor. La metafísica del arrabal. Madrid: Anaya, 1992.
SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas. Buenos Aires: Ariel, 1995.
NOTAS
[1] Uma forma de conceber este movimento borgeano é entendê-lo como uma resposta irônica a outra tentativa de unificar o heterogêneo povo argentino num estereotipo individual, o gaucho Martín Fierro, nas conferências de Leopoldo Lugones que darão lugar ao livro El payador.
[2] Em relação a outras caraterísticas do compadrito é interessante observar que, em Borges, a visão do personagem «se aleja de la que aparece, por ejemplo, en el sainete, donde se lo mostraba como pendenciero, hablador y como alguien que estaba permanentemente embarcado en la conquista de mujeres, lo que termina por llevar a un combate generalmente sangriento. El compadrito de Borges, que ha terminado imponiéndose como idea, es silencioso, comedido, alguien que elige muy bien lo que ha de decir, pues sabe que una palabra de más puede llevar a la pelea y a la muerte». (MAYER, 2006. p. 55-56)
___________
* Santo Gabriel Vaccaro es ensayista y escritor. Es Profesor graduado en Procuración y Derecho por la Universidad Nacional de La Plata – UNLP, Licenciado en Letras y Maestro en Literatura por la Universidade Federal de SantaCatarina -UFSC en Brasil. Es doctor en Literatura de la UFSC y profesor en la UFFS. Es miembro del grupo de estudios Trânsitos Literários de la UFFS.